O que parecia nada, era começo
- Juliana de Melo
- 26 de mai.
- 5 min de leitura
Atualizado: 31 de mai.
Como exercitar o olhar pode despertar a criatividade, o sentido e o reencontro com quem você é.

Uma flor de orquídea diferente em meio a tantas outras.
Uma mancha na pedra do banheiro.
Um instante que detém, sem avisar.
Às vezes é só um jogo de luz.
Ou talvez, o olhar pedindo para ficar um pouco mais ali.
Olhar é diferente de ver. A gente pode ver o mundo inteiro e não perceber nada. Mas, quando o olhar se torna presença, os detalhes começam a ganhar forma, e o que antes parecia banal, vira pergunta, memória, poesia.
Fayga Ostrower nos lembra que a percepção é o ponto de partida do processo criativo.
Ela não fala de um olhar técnico, mas de um olhar sensível, disponível, capaz de se transformar na medida em que se aproxima do que observa.
É nesse exercício de presença que a criação se inicia, não com um plano exato, mas com uma abertura sincera para o que se apresenta. E para isso, às vezes, é preciso mais do que zoom.
Olhar é um exercício
A maioria das pessoas acredita que ver é algo automático, abrimos os olhos, e pronto. Mas o olhar que transforma exige mais do que funcionamento biológico: ele se constrói. E como todo exercício, pede prática, sensibilidade e presença.
Fayga Ostrower, em “Criatividade e processo de criação”, aponta que perceber é um ato criativo. A percepção não é apenas captar uma imagem externa, mas acolher o que ela desperta em nós.
O que enxergamos não é separado do que sentimos, por isso, a maneira como olhamos o mundo fala também sobre a maneira como nos relacionamos com a vida.
Olhar, nesse sentido, é também uma forma de escuta. Quando nos permitimos observar um detalhe –um reflexo na água, um movimento de vento na planta, uma dobra no tecido da roupa estendida – algo se desloca dentro.
É como se o cotidiano, tão acostumado a passar despercebido, sussurrasse de volta. Mas só responde para quem se permite parar e notar.
Esse treino do olhar não é sobre busca por estética ou perfeição. É sobre afinar o vínculo com aquilo que está presente, e ao mesmo tempo, resgatar partes nossas que estavam adormecidas.
Um gesto simples, como fotografar uma cena sem intenção artística, pode abrir uma janela para algo interno. E aí, o detalhe vira símbolo.
Criatividade nasce da presença
Mirian Subirana, em “Criatividade para reinventar sua vida”, nos convida a compreender a criatividade como um caminho de reconexão com a nossa essência.
Mais do que gerar ideias novas, ser criativa é estar inteira no momento presente, disponível para o que pulsa, o que sente, o que deseja emergir.
A criatividade não mora em um talento específico ou em técnicas elaboradas. Ela habita na escuta do que está vivo em nós. E essa escuta só é possível quando há presença.
A presença, aqui, não significa foco forçado. É uma qualidade de estar: mais atenta, mais disponível, mais verdadeira. Quando estamos presentes, percebemos nuances, estabelecemos conexões inusitadas, deixamos espaço para a intuição tocar o que parecia confuso.
E o interessante é que esse estado criativo não precisa de grandes acontecimentos. Pode surgir no modo como colocamos uma flor no vaso, no movimento das mãos ao mexer na terra, na escolha das cores ao montar uma imagem.
Criar é também reorganizar o que já existe, enxergar o comum sob outra luz, encontrar sentido novo no que parecia repetido. E, nesse processo, não criamos só algo fora: criamos dentro: formas de elaborar, curar, compreender.
Ver mais do que a imagem: sentir o que ela provoca

Nem sempre é sobre o que está ali. Muitas vezes, é sobre o que aquilo desperta em nós.
Uma imagem pode ser apenas uma imagem para alguns. Mas para quem observa com presença, ela se torna porta: de memória, de sensação, de sentido.
Na arteterapia, reconhecemos esse movimento como parte essencial do processo criativo.
A imagem não é uma resposta pronta, mas um território de escuta. Ela acolhe aquilo que ainda não tem nome, traduz emoções que talvez não caberiam em palavras, amplia nossa capacidade de compreender e elaborar vivências.
Ao criar com as próprias mãos — seja um desenho, uma colagem, uma escultura, uma fotografia — não estamos apenas produzindo algo externo. Estamos sentindo. Estamos acessando partes profundas de nós mesmas.
A forma revela o que, até então, estava invisível.
E isso vale também para o olhar que escolhe registrar: quando você mira a câmera ou o celular para uma pequena mancha na pedra ou para a flor que brota discreta entre tantas outras, você está dizendo algo sobre o que seu olhar escolheu ver e sobre o que, dentro de você, está pedindo para ser visto também.
Por que exercitar o olhar nos ajuda a viver melhor
Exercitar o olhar não é apenas uma prática estética, é um caminho de cuidado com a vida.
Quando treinamos o olhar para os detalhes, afinamos também a escuta de nós mesmas. Aprendemos a reconhecer nuances, a dar valor ao que parecia pequeno, a perceber o que antes passava batido.
E isso se estende para além da imagem: passamos a observar melhor os nossos sentimentos, os ciclos que vivemos, as necessidades que antes silenciávamos.

Fayga Ostrower dizia que perceber com profundidade transforma. E transforma porque amplia. Ampliar o olhar é também ampliar o espaço interno, onde cabem mais possibilidades, mais sensações, mais humanidade.
Já Mirian Subirana propõe que a criatividade é a arte de ver com novos olhos, e, a partir disso, reinventar a vida.
Na correria do cotidiano, é comum ficarmos no automático, tentando apenas cumprir o que precisa ser feito. Mas quando pausamos, ainda que por alguns segundos, e olhamos com atenção para uma cena, um gesto, um traço, algo se reorganiza dentro. A criatividade se alimenta dessas pausas.
E com ela, vem também a reconstrução de sentido, a capacidade de lidar com o que sentimos, a possibilidade de criar saídas e formas de existir com mais verdade.
Ao estimularmos esse olhar mais atento e sensível, abrimos espaço para uma vida mais significativa, mais presente e mais nossa.
O que parecia nada, era começo
Entre uma mancha na pedra e o botão de uma flor, pode surgir uma revelação. Pequena, silenciosa, mas poderosa.
Às vezes é preciso mais do que zoom para enxergar a imagem.

É preciso deixar que o olhar se aproxime com presença, e que o sentir faça parte da observação.
Quando paramos de buscar respostas imediatas e nos abrimos ao detalhe, percebemos que muitos começos estão escondidos no que parecia desimportante.
Aquilo que antes não era nada, torna-se ponto de partida: para criar, para compreender, para se reencontrar.
Esse é um convite.
A exercitar o olhar, a permitir-se ver com mais delicadeza o que te cerca e o que vive em você.
A reconhecer na expressão artística não uma técnica, mas uma forma de escuta. E, principalmente, a descobrir que a criatividade não está longe, nem exige preparo especial.
Ela acontece no momento em que você se permite estar inteira no gesto que realiza, na imagem que acolhe, no símbolo que toca.
É nesse espírito que conduzo o meu trabalho como arteterapeuta. Acolhendo imagens, formas, cores e silêncios, como quem acompanha, com respeito e presença, cada mulher em seu próprio modo de se reencontrar.

Referências Bibliográficas
Ostrower, Fayga. Criatividade e processo de criação. Editora Vozes.
Subirana, Mirian. Criatividade para reinventar sua vida. Editora Vozes.
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